Proibir o aborto não salva crianças e mata mulheres

Rebecca Gomperts
Especial para o UOL
08/04/201506h00

No Brasil, mulheres de todas as religiões abortam. Jovens abortam e, sobretudo, mães abortam. Cerca de 80% dos abortos no Brasil são realizados por mulheres que já têm filhos. Nesse cenário, proibir o aborto e, consequentemente, levar mulheres a abortar em situações precárias e arriscadas, é produzir uma usina de órfãos.

É evidente que proibir o aborto não salva crianças, mata mulheres. Isso é patentemente óbvio quando se realiza qualquer pesquisa cientificamente válida sobre aborto. No Uruguai, com a legalização recente, nenhuma mulher morreu em decorrência de um aborto inseguro. O aborto salva vidas. 

É por isso que, em 1999, fundei a organização Women on Waves (do inglês, "mulheres nas ondas"), em que uma equipe de médicos e ativistas ia, a pedido e em parceria com organizações locais, com um barco registrado na Holanda (e portanto submetido à lei holandesa em alto-mar) realizar abortos medicinal em países onde ele era proibido, de maneira a acender o debate sobre a questão. 

O aborto medicinal até as 12 semanas de gravidez  é extremamente seguro, se realizado no tempo e nas condições apropriadas. Estatisticamente, realizar um aborto seguro é menos perigoso que levar uma gestação adiante.

As mulheres podem abortar com segurança sozinhas, isso já foi comprovado. Aliás, em vários países onde o aborto é legal, as mulheres buscam os comprimidos nas clínicas e vão realizar seu aborto no conforto de suas casa.

Pelo sucesso das operações na Irlanda, na Polônia, em Portugal, na Espanha e no Marrocos, mulheres do mundo inteiro começaram a enviar emails para a Women on Waves tentando conseguir um aborto seguro.

Foi para tentar ajudá-las que criei a organização Women on Web (do inglês, "mulheres na rede"), que conta com consultoras do mundo inteiro, em 14 idiomas, para responder a todas as questões de mulheres sobre aborto, direitos reprodutivos e a realizar teleconsultas. 

Todo ano, mais de 12 mil brasileiras se comunicam com as consultoras da Women on Web. As situações relatadas são, muitas vezes, estarrecedoras. O Brasil é hoje um dos piores países para abortar, muito pior que em vários países da África e do sudeste asiático. 

Depois do caso Jandira dos Santos, que foi assassinada e carbonizada após tentar obter um aborto inseguro, ficou óbvio que nem com cinco mil reais é possível ter acesso a um aborto seguro no país.

Golpistas lucram com a situação e cobram até mil reais por comprimidos falsos, mulheres se endividam e continuam com a gravidez com ainda menos recursos econômicos.

Outras realizam abortos e, ao irem para hospitais, têm o sigilo médico violado, o que é um absurdo. Elas são algemadas a macas e sofrem processos judiciais, o que leva muitas a evitar procurar ajuda médica depois de um aborto, gerando ainda mais mortes. 

Mulheres nos escrevem querendo utilizar métodos perigosos, chás, violência física, cabides. No entanto, basta um comprimido para que as mulheres possam abortar até as 12 semanas em segurança.

Maternidade à força

Hoje mesmo, uma mãe nos escreveu implorando para que ajudássemos a sua filha. A camisinha estourou e a jovem, cursando o Ensino Médio, sonha em poder continuar seus estudos. A mãe nos avisa que ela está em estado de choque, só chora há dias e não sai do quarto. O jovem que a engravidou não quis assumir a gravidez e segue seus estudos sem problemas.

Nem todas as famílias são solidárias e, muitas vezes, mulheres e jovens devem fazer tudo em segredo, sem poder compartilhar a experiência. Por isso, a Women on Web tem a seção 'Eu fiz um Aborto', na qual mulheres podem escrever sobre a sua experiência, diminuindo o tabu.

Outras mulheres foram estupradas, muitas delas pelo próprio companheiro, e não conseguem acesso ao aborto legal. Uma jovem, depois de ser estuprada, foi a um centro médico e nos contou que ouviu dos funcionários que era mentira, que ela não poderia abortar em caso de estupro. Mesmo quando a lei está a favor das mulheres, no Brasil tentam omiti-la e impor a maternidade à força.

Hoje, mais ou menos metade dos pacotes enviados por nós são detidos pela Anvisa, e as mulheres devem recorrer ao mercado paralelo, a clínicas clandestinas e à insegurança. O Estado, que deveria proteger mulheres, se esforça em matá-las em vez de oferecer um aborto seguro.

Aliás, cada vez mais estudos comprovam que filhos não desejados têm maior propensão a desenvolver doenças psiquiátricas, a ter empregos de menor remuneração e a sofrer de depressão. Impor a maternidade a uma mulher que não a deseja não salva ninguém, apenas destroça duas vidas de uma só vez, a da mulher e a da criança.

Um milhão de mulheres abortam no Brasil. Um milhão de mulheres continuarão a abortar, pouco importa a legislação. A única dúvida é quantas entre essas o Estado brasileiro vai escolher matar por meio da proibição ao aborto seguro. 

A Women on Web escuta mais de 12 mil mulheres brasileiras todos os anos. Quando leio seus e-mails, fico profundamente desolada com a situação brasileira, de absoluta crueldade e retrocesso. Ainda assim, sei que essas são apenas um décimo da história.  

Tradutor: Leticia Zenevich